Alberto Villas
[email protected]Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'
Quisera eu ao menos uma vez, não ligar a TV no Jornal Nacional às oito e meia em ponto, passar batido sem notícias do B, mudar de canal
Quisera eu esquecer o B, esquecer de vez, pra nunca mais. Quisera eu acordar de manhã, pisar na Folha sobre o capacho, ignorar O Globo na caixa de cartas, sequer piscar pro Estadão. Ir direto pra rede que tem na varanda da minha casa, pegar a Visita de João Gilberto aos Novos Baianos e ler as últimas doze páginas que ainda me restam.
Quisera eu ignorar as frases imbecis do B, observar o crescimento das couves, do alecrim, da sálvia e do tomilho limão que plantei na hortinha que temos aqui. Esperar o beija-flor que chega voando toda manhã, já sugando a água com açúcar que pinga do bebedouro, me olhando desconfiado, partiu!
Quisera eu não ver mais nem a fotografia asquerosa do B, escolher um entre os muitos discos organizados em caixotes da Tok Stok no chão do meu escritório. Pegar o Domingo, passar uma flanela no vinil e ouvir Caetano cantando que menina é aquela que entrou na roda agora, ela tem um remelexo que valha-me Deus Nossa Senhora.
Quisera eu nem mais pensar no B, deixar os dias passarem devagar numa operação tartaruga, com tempo para ir até a cozinha e preparar um café de cápsula, adoçar só com um pouquinho de açúcar, contrariando os conselhos que o doutor Drauzio Varella me dava quando eu trabalhava no show da vida.
Quisera eu não ouvir mais ninguém falar do B, ter tempo de escolher o próximo livro, Os anos felizes, o diário de Emilio Renzi e confessar minha paixão por Ricardo Piglia. Ter tempo de pegar o iPhone e ligar pra Travessa do IMS pra saber se o número de agosto da Quatro Cinco Um já chegou.
Quisera eu ao menos uma vez, não ligar a televisão no Jornal Nacional às oito e meia em ponto, passar batido sem notícias do B, mudar de canal, ver o Decora, o Perto do Fogo, ver aquela receita de chuchu ao forno da Rita Lobo, no GNT.
Quisera eu nunca mais ouvir a voz do B, ter tempo e tranquilidade para dobrar bem dobradas minhas camisetas, tirar as bolinhas das blusas de lã e enrolar minhas meias coloridas arrumando-as numa cestinha de ferro que comprei faz tempo na Etna.
Quisera eu esquecer de vez o B, preparar o meu almoço, uma moqueca de cação comprado no Mercado da Lapa, jogar o leite de coco, picar a cebola, o tomate e o pimentão. Esparramar por cima o coentro, porque eu gosto mesmo é de comer com coentro, eu gosto mesmo é de estar por dentro.
Quisera eu deletar os B do Twitter pra não ter mais notícias do zero um, do zero dois, do zero três, quiçá do zero à esquerda. Pegar a bola de couro e descer até a quadra pra jogar um bolão com o João Trindade, craque do Colégio Ofélia Fonseca.
Quisera eu ignorar o B, percorrer correndo corredores em silêncio, perder as paredes aparentes do edifício, penetrar no labirinto, um labirinto de labirintos dentro do apartamento.
Quisera eu não pronunciar mais o nome do B, pegar o primeiro avião com destino a felicidade, pousar em Maceió, seguir até São Miguel dos Milagres, comer uma tapioca, provar da água salgada do mar morno e perguntar de quem é esse jegue?
Quisera eu, Antonio Prata, poder ler os originais da biografia do Drummond que, sei, está sendo escrita, chutar a pedra no caminho, já que a festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou. E para aquele que é sem nome, que zomba dos outros, aquele que faz versos, que ama, protesta, perguntar: E agora, José?
O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.
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