CartaCapital

As contas que sobram para o CPF mais fraco na cadeia de comando

Perto do presidente da Vale, o que é sobrar a responsabilidade para um mero engenheiro?

Apoie Siga-nos no

Por Frederico de Almeida

Menos de uma semana depois do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, o ministro da Casa Civil Onyx Lorenzoni afirmou que a responsabilização pela tragédia deveria chegar “no CPF de alguém”. Naquela mesma semana, cinco engenheiros que atuaram na avaliação de riscos da barragem foram presos preventivamente, sendo dois deles funcionários de uma empresa terceirizada pela Vale. Por decisão do STJ, eles seriam soltos alguns dias depois, após a tomada de seus depoimentos.

Nesta sexta-feira, 15 de fevereiro, uma nova operação policial prendeu outros oito funcionários da Vale. Um dia antes, o presidente da empresa Fábio Schvartsman afirmou em audiência pública na Câmara dos Deputados que a Vale era uma “joia brasileira”, e que por isso “não pode ser condenada por um acidente”.

Eis aí um resumo perfeito da lógica do sistema de justiça criminal: de um lado, altas expectativas sociais sobre sua capacidade de ser solução definitiva para problemas sociais; de outro, sua limitação à responsabilização individual, que por sua vez leva à delimitação de certas condutas e pessoas a serem punidas e, assim, à seletividade na punição.

Segundo o presidente da empresa, a Vale é uma joia do Brasil. Foto de consequências de Brumadinho por Mauro Pimentel/AFP

No fim das contas, essa responsabilização limitada e seletiva mostra-se incapaz de realizar justiça efetiva e de resolver os problemas que estão na raiz da violência e da criminalidade, realimentando a insatisfação social e novas e crescentes demandas por mais punição.

O ministro Lorenzoni nem precisaria fazer o apelo: não é difícil que o sistema de justiça criminal chegue ao CPF de alguém, e a enorme e crescente população carcerária brasileira é a maior prova disso. A questão é que o CPF de alguém não raro vem associado a determinado CEP e faixa de IRPF: a polícia que entra atirando e mata “suspeitos” em favelas Brasil afora não age com a mesma desenvoltura nos bairros das classes médias e altas.

Leia também: Advogados ambientais expõem erros de conduta da Vale em Brumadinho

Chegar a um CNPJ, então, nem pensar. A responsabilização penal de pessoas jurídicas é assunto controverso na teoria jurídica, e a lei brasileira passa longe disso. Não se admite responsabilidade objetiva de sócios e dirigentes, sendo necessário demonstrar a efetiva participação dessas pessoas físicas (responsabilidade subjetiva) nas condutas e nos resultados criminosos.

Porém, a criatividade judicial brasileira encontrou, recentemente, algumas formas de contornar essas limitações. A tipificação criminal das associações criminosas não significa responsabilização penal de pessoas jurídicas, mas serve, na prática, para responsabilizar pessoas físicas que atuam de maneira associada em organizações voltadas para a prática de crimes; serve também, nos discursos públicos que criminalizam imagens e reputações, também para responsabilizar (se não juridicamente, ao menos simbolicamente) essas organizações.

O uso deturpado da teoria do domínio do fato também foi uma saída criativa dos juristas brasileiros para chegar às posições de liderança formal de certas organizações no interior das quais pessoas físicas praticaram crimes, em diferentes pontos da hierarquia.

Não por acaso, ambas as chicanas jurídicas foram usadas para a perseguição política e judicial ao PT e suas lideranças: seus principais dirigentes foram presos e o partido foi publicamente escorraçado, como se fosse uma grande e homogênea quadrilha, acusação que caiu sobre toda sua militância, independentemente de suas responsabilidades subjetivas.

Mas é difícil esperar que o mesmo aconteça com a Vale, e o exemplo da Lava Jato mostra que as empresas que participaram dos mesmos esquemas de corrupção continuam aí, com suas atividades, imagens e lucros relativamente bem assegurados pela seletividade da justiça criminal e por vantajosos acordos de delação premiada.

E o mesmo podemos dizer do PSDB e suas lideranças igualmente envolvidas em escândalos de corrupção – o que sugere que, além do CPF, do CEP e do IRPF, as siglas partidárias também são filtros efetivos da aplicação de justiça.

Leia também: Bolsonaro na mira: Bebianno vai de "laranjeiro" a homem-bomba?

Não estou aqui defendendo a expansão desse sistema de justiça criminal seletivo e incapaz de produzir justiça, pelo contrário. Responsabilização é algo que vai muito além da punição, e a punição tem sido, historicamente, uma forma bastante limitada de responsabilização. O

que não podemos aceitar é que a punição seja implacavelmente aplicada para uns, enquanto para outros se discuta com tanta parcimônia e cautela a justiça e a necessidade de medidas efetivas de responsabilização.

Mantida essa lógica, vai sempre sobrar para o CPF de alguém.

E esse alguém tende a ser o lado mais fraco da corda que arrebenta, embora a ideia de “fraco” seja relativa: um engenheiro terceirizado não é um morador de favela, mas é o lado mais fraco de uma cadeia de comando e responsabilidades de uma atividade econômica grande e complexa como a mineração.

Os condenados no Mensalão e na Lava Jato eram figuras politicamente poderosas, mas certamente não foram nem os primeiros nem os mais poderosos corruptos da história política brasileira.

Embora seja ele o titular do mandato popular, o ex-deputado estadual e agora senador Flávio Bolsonaro está jogando nas costas do seu assessor Fabrício Queiroz todas as responsabilidades dos erros de seu gabinete, da contração de funcionários fantasmas às homenagens públicas a milicianos.

O ministro da Secretaria Geral da Presidência Gustavo Bebianno foi um dos responsáveis pela arrebatadora ascensão política de Jair Bolsonaro e do PSL, mas corre o risco de ser descartado como apenas mais uma fruta podre no laranjal do novo regime.

Como se vê, sempre sobra para o CPF de alguém.

Foto: Agência Brasil

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo