Economia

O que os Racionais podem ensinar sobre consumo e finanças?

Músicas do grupo de rap são usadas em curso de finanças voltado para a população negra das periferias

O grupo Racionas MC's se apresenta no centro de São Paulo durante a Virada Cultural de 2013
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A dissonância entre o mercado financeiro e o cotidiano das finanças pessoais incomodava a economista Gabriela Mendes Chaves. No trabalho, o contato era com ativos financeiros que superavam o PIB nacional, mas quando se voltava para o dia-a-dia, via na população um déficit de conhecimento dos conceitos mais básicos de economia.

Com base nas estatísticas e na própria vivência pessoal, ela notou que os negros e negras eram subrepresentados no mundo das finanças. Há dois anos, ela e a contadora Gabriela Gomes se uniram e criaram uma empresa focada no empoderamento financeiro, a NoFront, que começou de vez suas atividades em maio deste ano e que terá lançamento oficial neste mês. O público alvo? A comunidade negra das periferias.

Em um contexto de crise, permeado por desemprego, subemprego, subremuneração e baixa educação financeira, a população negra no Brasil é a mais prejudicada. O desemprego é muito maior entre os negros e o desnível de remuneração entre profissionais negros e brancos com a mesma qualificação ainda é muito alto. No mercado financeiro, eles são exclusivamente tomadores de crédito e seus pedidos de empréstimos são três vezes mais negados que os de pessoas brancas.

Gabriela Mendes explica que o objetivo é fortalecer economicamente as comunidades negras e fornecer qualificação e repertório para que elas façam escolhas financeiras mais conscientes. “Infelizmente, não vamos mudar a estrutura do capitalismo, mas queremos usar o conhecimento como uma saída para fomentar a economia negra”, explica a economista.

Mas como fazer com que o repertório das finanças atinja, de fato, esse público? Foi com essa indagação que surgiu a ideia de usar o rap. “O Racionais MC’s ocupa um lugar muito importante dentro da cultura nacional do ponto de vista da voz crítica que eles dão sobre a situação do negro no Brasil”, explica Gabriela. “Muitas pessoas iam para o nosso curso acuadas, mas quando veem uma música que fala da realidade delas, elas entendem melhor.”

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O álbum “Cores e Valores”, que aborda a condição econômica de comunidades negras da periferia, foi determinante para que as sócias escolhessem as músicas do grupo da zona sul paulistana como meio didático. “Os Racionais representam uma mudança na autoestima da população da periferia”, explica Thiago Vinícius, que aos 20 anos fundou, no Capão Redondo, terra de Mano Brown, o banco comunitário Solano Trindade, que atualmente também é uma agência cultural.

“Eles falam de referências nossas, de como é viver em um Estado que te renega o tempo todo. Meu pai e minha mãe acompanham os caras. Eles atravessam gerações falando de como é importante se manter vivo e atuante. Vamos levar isso para as salas de aula”, comenta Thiago, citando a iniciativa do vestibular da Unicamp, que tornou leitura obrigatória o álbum “Sobrevivendo no Inferno”, obra-prima dos Racionais, de 1997.

Para Vinícius, não adianta ensinar na sala de aula usando exemplos distantes da realidade. “Temos que problematizar o status quo da comunidade e temos que aprender com as nossas referências”, completa.

Rap e consumo
Na Virada Cultural de 2013, Mano Brown proferiu um famoso discurso que viralizou na internet. O integrante do Racionais MC’s deu uma bronca durante o show ao comentar arrastões que aconteceram durante a madrugada do dia anterior.

“Os malandrão roubaram o Mizzuno do moleque que custa 900 paus. Ele vai voltar pra quebrada dele mais pobre. Quem ganha 900 por mês aí levanta a mão. Nosso povo tá dizendo que tá desempregado”, disse, para o mar de jovens que assistia ao show.

“A gente tem que se capacitar, temos que aprender um pouquinho mais. Hoje em dia você pode procurar a sua informação e o que te interesse. As vezes temos que fazer o que não gostamos para sobreviver. O que eu vi ontem no centro tá longe de ser uma evolução. O rap precisa de gente de caráter, não de malandrão”, terminava o discurso, ovacionado pela público. 

A época foi o início da massificação do uso da palavra “ostentação” no meio cultural. Um ano depois, veio a onda dos “rolezinhos”. Em que jovens, em especial das periferias, ocuparam os shoppings, espaço em que eram tratados com de forma preconceituosa, ostentando roupas de marcas famosas. Toda essa narrativa não passou despercebida das letras do Racionais MC’s.

De 2006 a 2014, 3,3 milhões de famílias ascenderam das classes D e E para a C, que, no começo de 2014 era a classe social que mais crescia no país. Em 2013, as 108 milhões de pessoas que compunham essa classe gastaram 1,17 trilhão de reais. A aumento do consumo vinha acontecendo graças a uma diminuição do desemprego e às políticas públicas de distribuição de renda, implantadas no início da década.

Também em 2013, antes da recessão e da crise econômica que começou a atingir o país dois anos depois, a possibilidade do aumento da renda dessas famílias colocou em pauta a forma como a classe C gastava seu dinheiro.

No álbum “Cores e Valores”, lançado em 2014, a ascensão social é cantada por Ice Blue, dos Racionais. (Os nego quer algo mais do que um barraco pra dormir / Os nego quer não só viver de aparência / Quer ter roupa, quer ter joia e se incluir / Quer ter euro, quer ter dólar e usufruir), assim como a cultura do consumo (Cordão (eu compro) / Que agride (eu compro) / Os pano (eu compro) / De grife (eu compro) / Pra nós não tem limite) e as desigualdades que não cessaram com o aumento do poder de consumo (Olha só aquele shopping, que da hora! / Uns moleques na frente pedindo esmola).

“Qual é o efeito quando o cara que nunca teve acesso ao ensino financeiro pode entrar numa loja e gastar seu dinheiro? Isso é muito importante para entender de onde vem a ostentação no caso de quem sempre teve o acesso negado ao consumo e ao dinheiro. É um paradigma muito complexo”, argumenta Gabriela.

Caroline Amanda, do Coletivo Carolina de Jesus, explica que em um momento de ascensão da classe C, como o vivido na última década, a prática do consumo foi usada por muitos como forma de substituir lacunas sociais. “Aquele que foi humilhado, sofreu violências, violações, vai usar o consumo para ser aceito”, explica ela.

Já em 2014, um em cada quatro inadimplentes da classe C devia ao menos o dobro de sua renda. Em 2017, segundo o Serasa, quase 80% dos brasileiros inadimplentes ganhava, no máximo, até dois salários mínimos.

“A importância da discussão da retomada da agência financeira tem a ver com a compreensão do que é ser negro na sociedade e sobre não usar o consumo como fuga, como acontece, mas de forma responsável”, completa Caroline.

Público alvo  
Até agora, 80% dos alunos da NoFront são mulheres. A faixa etária varia dos 18 aos 58 anos.

Gabriela joga luz para o fato de que as mulheres negras de periferias desenvolvem, com a vivência, um know how para administrar o pouco e do pouco fazer muito. Não fugindo das estatísticas, muitas assumem uma jornada dupla, muitas vezes tripla, para sustentar a família.

“Na periferia as mulheres ganham dois salários mínimos e ainda ajudam e sustentam os filhos e netos. Isso requer uma disciplina muito grande. A responsabilidade com a família que faz com que elas necessariamente precisem estar pensando em finanças a todo momento. O controle financeiro é fundamental”, afirma.

A mesma população negra também estuda e trabalha ao mesmo tempo. Para Caroline Amanda, negra e estudante da UFRJ, a permanência estudantil tem vínculo embrionário com as condições financeiras dos jovens.

As cotas raciais não evitam a evasão universitária. Em um contexto de arrocho e até mesmo cancelamento de bolsas estudantis, Caroline vê a tomada da agência financeira como ajuda essencial para evitar a evasão. “O atraso e a precariedade das bolsas afeta toda a renda da família que mantém o jovem na universidade. O planejamento financeiro é importante para a permanência deles”, afirma.

Também há um público para o qual as finanças têm se tornado essenciais. Thiago conta que os jovens das quebradas têm cada vez mais se interessado por finanças para organizar sua renda gerada através de produtos culturais. “Oitenta por cento dos empréstimos da Solano é ligado aos jovens”, explica ele, que coordena uma agência cultural com mais de 150 jovens empreendedores das periferias de São Paulo.

Agora a intenção é levar o projeto da NoFront ao Rio de Janeiro também, com a ajuda de Carolina. “Vamos tentar somar essa literatura musical dos Racionais com o funk”, conta a estudante.

Para ela, a conjuntura vivida pelo estado é muito diferente da situação de São Paulo, o que faz com que a didática talvez careça de adaptações. Além da crise financeira aguda, a segurança pública é, inevitavelmente, a principal preocupação. “A prioridade está em sobreviver. Mas não dá para sobreviver só fugindo da bala, tem que fugir dos juros também, da dívida, da inadimplência”, comenta.

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