Educação

Congresso extraordinário da UNE marca aliança de grupos concorrentes contra Bolsonaro

Durante gestões petistas, clima interno era menos amistoso

Estudantes concentram esforços contra Bolsonaro em novo Congresso. Foto: Karla Boughoff/CUCA da UNE
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Foi preciso se reinventar. Segundo o parecer interno da União Nacional dos Estudantes, a gestão Jair Bolsonaro e a pandemia impuseram um alinhamento entre forças que por tantos anos estiveram em atrito. Tornou-se necessário estabelecer uma série de acordos para, inclusive, decidir como ficaria a eleição da entidade neste ano.

 

Neste ano, os estudantes estão chamando o Conune de “extraordinário”, devido às condições atípicas. A convenção, que teve início na quarta-feira 14 e terminou em 18 de julho, foi realizada virtualmente e contou com a participação de pelo menos 5 mil alunos de diferentes níveis de ensino.

Normalmente, antes do evento, militantes mobilizam eleições em todas as instituições públicas de ensino superior, que levam um ano para serem concluídas. Tudo é regulamentado por um regimento escrito coletivamente. Na prática, centenas de jovens dividem o seu tempo entre o estudo e o trabalho com a construção desses processos, sem remuneração.

Nesses pleitos, os alunos escolhem os seus “delegados”, ou seja, os representantes estudantis das suas instituições, que terão direito a voto presencial no Conune. São responsabilidades dos Diretórios Estudantis ou de comissões eleitorais a convocação, a realização, a apuração e a proclamação de resultados nas eleições desses delegados. Juventudes organizadas disputam o voto dos eleitores a partir dos programas dos partidos e dos movimentos sociais dos quais fazem parte.

Esses grupos políticos, tradicionalmente, compõem campos adversários dentro da UNE, ainda que maioria se identifique com a esquerda. Os grupos políticos que obtêm mais votos nas eleições primárias conseguem, portanto, levar mais delegados às eleições presenciais do Congresso. Dessa forma, esses grupos aumentam a possibilidade de obter mais cadeiras na diretoria.

Na pandemia, porém, ficou inviável realizar eleições. A decisão conjunta foi prolongar a composição da diretoria como está hoje. Isso significa que as forças que já têm cadeiras na diretoria permanecerão nelas, podendo trocar os seus representantes. Na prática, a UNE estenderá os mandatos do seu presidente, dos seus 3 vice-presidentes, do seu secretário-geral e dos seus 12 diretores executivos. As mesmas forças também serão mantidas nas 85 cadeiras da diretoria plena.

A União da Juventude Socialista, a UJS, ligada ao PCdoB, foi reconduzida pela 17ª vez consecutiva à Presidência da UNE. A UJS é eleita para presidir a entidade há mais de 30 anos, desde 1989. Neste ano, o goiano Iago Montalvão, estudante de Economia da USP, entrega o comando para a amazonense Bruna Brelaz, aluna na Faculdade Autônoma de Direito, no domingo 18. A organização também lidera o bloco que mais ocupa cadeiras na diretoria.

A eleição das teses também ficou comprometida. Além de escolher novos diretores, os estudantes, tradicionalmente, elegem textos que definem as posições políticas e as estratégias da UNE para os dois anos seguintes. São três teses: uma sobre educação, outra sobre o movimento estudantil e outra sobre a conjuntura política geral do País. Neste congresso extraordinário, no entanto, as forças elaboraram uma “resolução unificada”, que não foi a eleição e que prega “unidade e amplitude”. Ainda assim, as militâncias apresentaram, ao todo, 24 teses, cada uma com os três eixos, para fins de discussão.

Iago Montalvão ganhou Presidência da UNE em 2019. Foto: Karla Boughoff/CUCA da UNE

União contra Bolsonaro

Nos anos recentes, a UNE esteve dividida entre o “campo da majoritária”, o “campo popular” e a “oposição de esquerda”. A militância do PCdoB lidera o “campo da majoritária”, composto também por forças petistas. Já o “campo popular” era encabeçado pelo movimento Levante Popular da Juventude, da organização Consulta Popular, de cunho socialista e próximo ao PT e ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Por sua vez, a “oposição de esquerda” aglutinava especialmente juventudes do PSOL, como o Juntos, da tendência Movimento Esquerda Socialista, e o Rua – Juventude Anticapitalista, da tendência Insurgência, além da juventude Rebele-se, do Partido Comunista Revolucionário (hoje Unidade Popular), entre outras forças.

Em certo momento, especialmente em 2015, o ambiente do Conune estava bastante hostil. Era comum ouvir vaias ferozes entre as militâncias, enquanto discursos ocorriam no palanque. A esquerda brasileira estava no auge da decepção com Dilma Rousseff (PT), que, em seu 2º mandato, nomeou um banqueiro para o Ministério da Fazenda, Joaquim Levy. Quem estava próximo ao governo era chamado de “pelego” e associado à traição aos trabalhadores; quem não aceitava acordos com os petistas era tachado de “sectário”.

Maria Clara Delmonte, que deixa a 3ª vice-presidência da UNE pelo Rua, lembra que a disputa entre esses campos era feita dentro de um espectro progressista. Sua organização entendia que o “campo da majoritária” aderia mais à política de conciliação de classes adotada pelos governos petistas. Isso se refletia, por exemplo, em programas considerados problemáticos para essa juventude, como o Fundo de Financiamento Estudantil, o Fies, que favorecia demasiadamente os grandes empresários da educação, com poucas garantias aos estudantes.

“Eram governos que construíram políticas para o povo, então, existiam propostas de democratização das universidades. Mas a gente também viu uma priorização de verbas para o ensino privado. O período em que os conglomerados da educação privada mais se fortaleceram foi durante os governos petistas”, explica Maria Clara, estudante de Gestão Pública da UFRJ.

Iago Montalvão, da UJS, diz que, de fato, havia avaliações muito diferentes sobre a conjuntura da época, mas a aposta da sua organização era o diálogo.

“Parte majoritária da entidade tinha um nível de diálogo importante com o governo. Tinha críticas também, fazia manifestações contra a política econômica e os cortes na educação. Diga-se de passagem, o governo Dilma defendia 7% do PIB para a educação, nós é que conquistamos 10%. Mas eram análises diferentes que acabavam gerando algum nível de conflito na avaliação da conjuntura internamente na entidade.”

Congresso da UNE realizado em 2015 tinha maior divisão; no chão, o campo da majoritária; nas arquibancadas, a oposição de esquerda e o campo popular. Foto: Universidade Federal do Maranhão

A derrubada de Dilma, porém, impôs uma necessidade de união, com objetivo de preservar os ritos da democracia. Essa noção só foi reforçada com a eleição do presidente Jair Bolsonaro.

Em 2017, portanto, o “campo popular” deixou de existir. O Levante Popular da Juventude, sua maior organização, aumentou suas relações com a UJS e migrou para o “campo da majoritária”, junto com outros agrupamentos. Hoje, o bloco segue ocupado também por vertentes do PT, como Kizomba, juventude da corrente Democracia Socialista, e Para Todos, da corrente Construindo um Novo Brasil, a CNB.

Já o bloco antes denominado “oposição de esquerda” virou a “oposição democrática” ou “oposição unificada”. Forças do PSOL se aglutinaram com juventudes de movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, e criaram a Juventude Sem Medo, relevante setor da nova oposição. Também entrou neste bloco a União da Juventude Comunista, do PCB, que antes atuava somente como observadora. Hoje, essa juventude compõe um setor dentro da oposição com o Movimento por uma Universidade Popular, o MUP. Há, ainda, o Correnteza, ligado ao partido recém-nascido Unidade Popular, visto como o setor mais grandioso do bloco.

“Há uma diferença qualitativa”, analisa Maria Clara. “A oposição de esquerda se entendia como uma oposição à esquerda do petismo. Depois do golpe, o que nos unifica é mais um debate democrático do que programático.”

Nesse cenário, houve ainda a volta do PSTU, partido com importante presença no sindicalismo. Em 2009, militantes da sigla, inconformados com a hegemonia petista, tentaram emplacar uma entidade alternativa à UNE, que levou o nome de Assembleia Nacional dos Estudantes Livre, a Anel. Porém, a nova entidade perdeu fôlego depois de quatro congressos, o último em 2017. No 1º ano de Bolsonaro, em 2019, a juventude do partido, Rebeldia, anunciou o seu retorno para a UNE.

“O momento atual impõe a necessidade de unidade para enfrentarmos Bolsonaro. Temos orgulho da nossa história fora da UNE, pois, nestes últimos 15 anos, a entidade foi completamente atrelada aos governos do PT”, disse nota da Rebeldia. O grupo, entretanto, não entrou em nenhum dos dois campos hoje organizados.

A direita poucas vezes foi significativa na UNE. Em 2017, foi notada a presença de movimentos que dialogavam com o Movimento Brasil Livre, mas, em 2019, não estavam organizados para o Congresso.

Maria Carol, diretora de Relações Internacionais da UNE na última gestão e militante da UJC, analisa que organizações menores têm dificuldades específicas em disputar as eleições, sobretudo por questões financeiras. Organizações mais estruturadas têm um suporte maior para financiar os materiais de divulgação, o deslocamento da militância para atividades de campanha e até a assistência dos delegados no congresso presencial. O “campo da majoritária”, portanto, acaba tendo mais vantagens. A título de comparação, enquanto a UJS conseguiu levar cerca de 2 mil delegados para o Congresso em 2019, a UJC pôde transportar aproximadamente 200 votantes.

UJS, principal organização política da UNE e deve ocupar a Presidência pela 17ª vez. Foto: Karla Boughoff/Cuca da UNE

Hoje unidas, as militâncias da UNE têm passado pelo desafio de criar consensos sobre a melhor forma de enfrentar Bolsonaro. Na observação de Maria Carol, as organizações levaram tempo com divergências sobre aguardar as eleições do ano que vem ou retomar as ruas para derrubar o presidente de imediato. A entidade, no entanto, acabou sendo empurrada para os protestos, em um movimento “de fora para dentro”, e está ativa na convocação dos próximos atos. Segue pulsante, portanto, a discussão sobre como aproveitar o peso que a UNE tem na conjuntura política brasileira, como aquele visto nos massivos atos do Tsunami da Educação, em 2019, quando Abraham Weintraub era ministro.

“Essa discussão aparece nesse Congresso: qual é o papel da UNE? Como usar essa ferramenta de potencial gigantesco para derrotar Bolsonaro?”, questiona a estudante de Geografia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. “E, depois, se sobrevivermos a este caos, como construir um programa radical, no sentido de garantir direitos a estudantes e trabalhadores? São debates que temos travado no interior da entidade, para usar, na totalidade, a força que a UNE tem.”

As cadeiras na UNE

A seguir, CartaCapital relata a composição das 17 cadeiras da Diretoria Executiva da UNE, decidida a partir da proporcionalidade de votos obtidos pelos delegados no Conune. Em função do cenário pandêmico, as forças devem ser preservadas por um mandato temporário, até que uma nova votação presencial seja possível. Os nomes da nova gestão ainda não foram decididos por todas as militâncias.

  • UJS, PCdoB (Majoritária): 6 cadeiras. Presidência, Tesouraria, Diretoria de Universidades Privadas, Diretoria de Universidades Públicas, 1ª Diretoria de Universidades Públicas e Diretoria de Combate ao Racismo;
  • Levante Popular da Juventude, Consulta Popular (Majoritária): 2 cadeiras. Vice-presidência e Diretoria de Políticas Educacionais;
  • Kizomba, PT (Majoritária): 1 cadeira. 1ª Vice-presidência;
  • Juventude Socialista, PDT (Majoritária): 1 cadeira. 2ª Vice-presidência;
  • Juventude Sem Medo, PSOL, MTST e demais (Oposição): 1 cadeira. 3ª Vice-presidência;
  • Correnteza, UP (Oposição): 1 cadeira. Secretaria-Geral;
  • Juntos, PSOL (Oposição): 1 cadeira. 1ª Diretoria de Políticas Educacionais;
  • União da Juventude Comunista, PCB (Oposição): 1 cadeira. Diretoria de Relações Internacionais;
  • Construindo um Novo Brasil, PT (Majoritária): 2 cadeiras. Diretoria de Movimentos Sociais e Diretoria de LGBTs;
  • Juventude em Disparada, PT (Majoritária): 1 cadeira. Diretoria de Acesso à Universidade.

A oposição ao campo da majoritária, formada por juventudes do PSOL, PCB, UP, entre outros movimentos. Foto: José Carlos/CUCA da UNE

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