Política

Lindbergh Farias: “Sem confronto, não nos livraremos da Casa-Grande”

“Se a gente voltar para o governo, temos de voltar com faca nos dentes”, diz ex-senador em conversa com Mino Carta

Lindbergh: "A tarefa é a luta pela democracia, que é também contra o neoliberalismo. Não podemos dissociar uma coisa da outra" Lindbergh: "A tarefa é a luta pela democracia, que é também contra o neoliberalismo. Não podemos dissociar uma coisa da outra"
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Esta conversa com meu jovem e velho amigo Lindbergh Farias se desenrola à sombra de um passado teimoso que se recusa a passar. Não há razões de surpresa, pelo menos para mim, sempre inclinado a registrar esta perenidade, a maléfica resistência de pecados antigos. Passado remoto, mas também próximo. A sombra do general Frota, aquele que foi frustrado providencialmente na sua pretensão de se tornar mais um ditador, como se lerá em páginas seguintes, arrepia a conversa assim como a constatação de Farias sobre a resistência medieval da casa-grande.

“Nunca, depois do fim tardio da escravatura – diz meu valente interlocutor –, a presença da casa-grande foi tão evidente como agora.” Não discrepam as duas observações, de fato o Brasil ainda é aquele, o de hoje, o de ontem, o de sempre. A gravura de Debret, a retratar nesta página o almoço, ou o jantar que seja, do senhor da casa-grande, é a imagem perfeita para evocar aquele passado. À volta da mesa os fâmulos escravos povoam a cena, os adultos com seus abanos, as crianças com sua alegria prematura. Olhos atentos aos trajes do dono da casa: talvez esteja ainda de pijama e tragicamente vulgares são os pés protegidos por pantufas em uma situação de raro desalinho. Ao comer, ele exprime uma espécie de fastio e cruel indiferença.

Ocorre-me o rico brasileiro de hoje e verifico contristado que nada mudou. Há uma verdade alucinante no traço implacável do gravurista francês. Quanto ao general Frota, por pouco não tivemos de padecer a presença dele na moldura de uma ditadura que, fosse bem-sucedido, duraria mais que os 21 anos com que nos infelicitou. Onde estamos hoje? Entregues a um regime de exceção, diz Lindbergh. Enxergo nele o rebelde saudável e agudo. E bom conhecedor da nossa história, condenados a três séculos e meio de escravidão, até hoje não extinta.

Lindbergh não somente reconhece os erros da esquerda brasileira, mas também não aceita a ideia da conciliação que vincou a atuação do Partido dos Trabalhadores ao longo das décadas. Lamenta que o povo brasileiro não tenha sido mobilizado ao cabo de uma conscientização capaz de torná-lo cidadão. Sem confronto não há possibilidade de transformar o passado em presente, para enfrentar o futuro de “faca entre os dentes”. Uma voz como a do meu interlocutor não poderia ter vida fácil dentro do seu partido, e assim se deu conforme conta.

Discorda de Lula, como é fácil deduzir, na atuação política, mas não deixa de lhe reconhecer a liderança, a ponto de cogitar ainda de uma nova candidatura à Presidência da República do fundador do partido. Não aceita a ideia de um partido necessariamente de esquerda que busca o entendimento com o sistema financeiro, em sintonia com o pensamento de um grande amigo, o ex-governador e senador Roberto Requião, com quem atuou quando Dilma Rousseff chamou Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda, lance previsível, a bem da verdade, na história dos governos petistas. “Contra esta nomeação – sugeria então o amigo Requião – devemos organizar no Congresso um black bloc.” Hoje, ambos não poderiam, perdida a poltrona senatorial nas eleições que nos propiciaram a indigesta presença de Jair Bolsonaro.

Os piores inimigos de Lindbergh são o neoliberalismo e a interferência dos Estados Unidos nas políticas brasileira e latino-americana, a ponto de considerar Sérgio Moro e Deltan Dallagnol agentes de Washington. O neoliberalismo é o demônio do mercado, do rentismo, do dinheiro. O rebelde do PT é, antes de mais nada, um realista que encara os acontecimentos com uma honestidade intelectual muito rara no meu entendimento. Diz o que pensa sem reticências, mas com extraordinário respeito por aquilo que Hannah Arendt definia como a verdade factual. Recorda com carinho um almoço comigo, Luiz Gonzaga Belluzzo e Paulo Henrique Amorim, ainda durante o governo de Lula. Lá pelas tantas, ele fez referência à “ditadura militar”. Maníaco por definições, eu atalhei: que havia civis graúdos que invocavam a intervenção fardada e que dela tiraram grandes benefícios. Ditadura não merecia, no caso, qualquer adjetivo, ditadura e ponto. Ele bateu o martelo, disse: “É isso mesmo”.

A sombra de Frota

No centro da análise de Lindbergh Farias está a sombra de um aspirante a ditador que, felizmente, não chegou lá: o general Sylvio Frota, de quem o general Heleno foi, naqueles tempos da ditadura comandada por Ernesto Geisel, o anspeçada, ou seja, o carregador de pastas, o moço de recados. Frota manobrava para ser o sucessor de Geisel, mas acabou por ser demitido pelo próprio ditador. Ao qual não cabe, porém, o mérito, e sim ao general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil. Nem sempre Geisel entendia os rumos da abertura lenta, gradual, porém segura, conforme sua definição, desenhada de fato por Golbery. Vale a pena recordar.

Operado na Espanha de um descolamento da retina, o chefe da Casa Civil passou um mês acamado num quarto escuro em julho de 1975. Durante a sua ausência, dia 3 de agosto, Geisel pronunciou o discurso chamado Da Pá de Cal: dizia ele que o processo deveria sofrer uma parada súbita à espera de condições mais propícias. Fui recebido por Golbery de volta ao Planalto dia 4 de agosto, ele contemplava desolado o texto do discurso pousado sobre a sua mesa, de autoria de João Paulo dos Reis Velloso, ministro do Planejamento. “Veja só – disse Golbery contristado – este discurso escancara as portas do terror de Estado.” Foi o que se deu no final daquele ano, até a demissão do general Ednardo D’Ávila Mello, comandante do 2º Exército, em janeiro de 1976. Mais tarde, Golbery me explicaria: “Se não nos livrarmos de Frota até 12 de outubro de 1977, Geisel não conseguirá fazer o seu sucessor”.

Perguntei por que 12 de outubro. Descobrimento da América? Festa de Nossa Senhora Aparecida? Golbery sentenciou: “Não se preocupe, deixa comigo”. Frota foi demitido dia 12 de outubro de 1977.

A seguir, as passagens principais da conversa com Lindbergh Farias.

Democracia?

Nós não estamos numa democracia, acho que a definição correta é estado de exceção, não é ainda uma ditadura escancarada, vai ser uma luta para recuperar a democracia. (…) Você tem razão quando diz que democracia nunca houve, mas eu diria que desde o golpe a presidenta Dilma, o grau de desarranjo institucional atingiu um ponto extremo, o Judiciário virou um partido político, com a prisão do Lula, e a ajuda prestada na eleição de Bolsonaro, eu creio que uma das tarefas a ser cumprida no médio prazo, e talvez só uma Assembleia Nacional Constituinte tenha condições de realizá-la, é redesenhar o pacto democrático que se seguiu à Constituição de 88. Como democratizar o Poder Judiciário? Como criar uma cultura democrática nas Forças Armadas? Com o PT no poder, nós fizemos muito em termos de inclusão social, de melhora de vida do povo mais pobre, mas ficamos devendo muito em relação às instituições do Estado. Como é que fomos governo e não inauguramos um processo de formação democrática dos militares de hoje? A gente vê que quem está mandando neste governo é a ala dura dos militares. O general Heleno era carregador de pasta, chefe de gabinete do general Sylvio Frota, aquele que pretendia dar continuidade à ditadura. Frota ainda está mandando. Heleno, Bolsonaro, Frota.

Lula e seu governo

Lula apostou num projeto de conciliação entre as classes sociais e esqueceu que esta elite brasileira é escravocrata, antinacional e antidemocrática. Esta elite deu o golpe em Getúlio, deu o golpe em João Goulart e deu golpe na gente novamente. (…) Enquanto a gente devia ter na cabeça que no momento de fragilidade eles virão para impor o retrocesso. (…) Acho que a gente errou muito no trato das instituições do Estado brasileiro. (…) Nesse sentido, Hugo Chávez, na Venezuela, discordando ou não dele, desde o começo, diante da possibilidade de um golpe, tratou diferente a questão das Forças Armadas e manteve um processo de mobilização popular permanente.

Lindbergh e o PT

Tive um momento muito difícil no PT, em 2015. Porque, em 2015, o grande erro foi a nomeação de Joaquim Leny para o Ministério da Fazenda, e eu e Roberto Requião, senador pelo PMDB, votamos contra todo aquele pacote de ajuste fiscal apresentado pelo governo de Dilma Rousseff. O desemprego, que era 4,3% em dezembro de 2014, foi pra 10% no fim de 2015. Eu ligava para Lula e dizia: “Presidente, esse ajuste fiscal do Levy vai impor a derrota para a gente. É um grave equívoco”. (…) Mas tem muita gente do PT que entende ser necessário reorganizar o trabalho de base. (…) Nós erramos ter deixado de fazer o trabalho de base em cada bairro. O PT não vai voltar a ser o grande PT só pela luta institucional.

O confronto

Eu concordo completamente com sua convicção de que sem confronto não nos livraremos da casa-grande. Com um processo de mobilização popular permanente, com o povo organizado, você põe em xeque golpes da direita, acaba tendo até um efeito também preventivo, eles não ousariam se a gente tivesse mais capacidade de reação popular. Se a gente voltar para o governo, temos de voltar com faca nos dentes. (…) A tarefa é a luta pela democracia, que é também contra o neoliberalismo. Não podemos dissociar uma coisa da outra.

A tragédia neoliberal

Como é que a gente faz para sair de uma crise como esta, provocada pela pandemia? Tem de ter Estado, tem de ter políticas públicas, tem de ser ousado como Franklin D. Roosevelt foi com o New Deal. Tem de se espelhar na Europa pós-1945. A gente aqui tem de elaborar um programa de investimentos pesados. Nós, da esquerda, temos de elaborar esse programa alternativo a essas políticas de ajuste fiscal. Na minha avaliação, sofremos com a presença dos neoliberais mais radicais do mundo.

A situação se complica

Desde 2015, com o ajuste fiscal que vigorou com Temer e agora com Bolsonaro, cai a arrecadação, a dívida sobe, só tem um caminho para recuperar o crescimento num momento como este, uma política de investimento público comandada pelo Estado para o combate à desigualdade. Há de se investir em mobilidade urbana, em moradia, melhorando a vida do povo. (…) O problema é que mesmo na esquerda há quem tem uma cabeça muito fiscalista.

Lindbergh e Gleisi

É pública a minha situação com a Gleisi. Por ela tenho admiração muito grande, pela combatividade dela. Não é fácil ser presidente nacional do PT, uma mulher, num momento como esse. E ela tem essa postura de enfrentamento, e é por isso que tentam isolar ela no PT o tempo todo. Eu não sei como ela aguenta. E ela tem uma grande fidelidade ao Lula, mesmo discordando dele algumas vezes. (…) Mas Lula percebe que uma parte dessa direita neoliberal instalada na Rede Globo e outros personagens estão circunstancialmente contra Bolsonaro, e a gente tem de explorar essas contradições. Mas sabe também que essa turma quer continuar o processo de perseguição política contra a esquerda e contra ele.

Lula e FHC

Querem que Lula saia abraçando o Fernando Henrique Cardoso. Em nome de quê? (…) FHC apoiou o golpe contra Dilma, defendeu Sérgio Moro mesmo depois das revelações da Vaza-Jato do Intercept, e agora querem juntar uma frente como ele. Qual é a pauta? (…) Alguns querem que Lula abrace FHC, abrace Luciano Huck, se junte com essa turma. Excluo que seja por aí. Até porque a nossa luta tem de ser uma recomposição do processo democrático contra essas políticas neoliberais. A gente não pode, como defendem alguns, que são meus amigos, do PCdoB, achando que a gente tinha de aderir a uma frente como esta, ficar um pouco quieto, não ficar demarcando campo a respeito do programa econômico.

Risco de golpe

Não vejo condições de Bolsonaro, numa situação como esta, de isolamento institucional, dar um golpe em outra fase do golpe inicial, pois não é tão simples nem tão fácil. Então acho que as bandeiras democráticas são importantes, mas entendo que Lula acerta quando diz que é preciso falar da vida do povo, a gente tem de propor um projeto de renda mínima estrutural, não pode acabar com essa renda mínima num momento como este, temos de propor uma política de emprego. (…) Eu queria muito que a relação do PT com Ciro Gomes fosse outra, eu tinha, historicamente, uma boa relação com Ciro Gomes, tentei conversar muito naquele processo eleitoral com ele, com Cid, porque acho que, se tivesse havido uma decisão política do Ciro Gomes naquele momento, ele teria sido candidato a vice-presidente da chapa do Lula, se apostasse naquele processo.

A greve do precariado

São novos escravos. Isso aqui é de doer o que a gente vê, você via cinco anos atrás alguém que entregava pizza numa pizzaria, a pessoa tinha uma carteira assinada, agora não recebe, não tem direito a nada. É uma garotada, uma juventude andando nessas bicicletas, entregando comida, sabe qual é uma pauta dessa mobilização dos trabalhadores de aplicativos? Refeição, vale-refeição. Porque eles estão dizendo que muitos deles vão entregar comida passando fome. Não têm direito à aposentadoria, não tem direito a nada, nenhum direito trabalhista, é o que eles chamam e o Bolsonaro falava como “novos empreendedores”. É uma turma muito mais difícil de organizar. (…) Quando o PT, no seu início, tinha todo mundo nas fábricas, se organizava ali, é muito mais difícil organizar dessa forma. Veja que a reforma trabalhista que foi aprovada aqui, desde a época de Margaret Thatcher na Inglaterra, tinha um objetivo também que era desorganizar a luta do movimento sindical, quebrar no meio a organização. Então não é simples esse processo, estou botando a maior fé nesse pessoal que está tentando construir a greve, mas não é fácil o processo de organização, não é como antigamente. Então, acho que esse ponto é central, tem tudo a ver com quando Mino Carta fala da casa-grande, aqui foram quase quatro séculos de escravidão, mas novamente essa elite escravocrata quer de todas as formas é que a senzala continue de pé. (…) Tem um bocado de gente nossa metida nisso. A gente está com lideranças do PT dentro do movimento, a gente está ajudando, tem muita gente ajudando, tem um processo aí para ajudar na construção dessa greve. Agora, não é no estalar dos dedos. A gente recorda aquele movimento sindical que, no final dos anos 70, começo dos 80, era muito forte, o movimento sindical hoje tem muita dificuldade de mobilizar, em especial depois da reforma trabalhista. Temos de estabelecer novas pautas, para que os trabalhadores percebam o lado político da questão. (…) Dá dó no coração quando vejo, como na eleição passada, esta garotada sem rumo, até votando em Bolsonaro.

O amigo Requião

Ele era o que eu dizia, a nossa liderança maior, e a gente articulava tudo e ia no gabinete do Requião. Roberto Requião é uma pessoa de valor, é um rebelde. E tem uma cena engraçadíssima, foi em 2015, no começo daquele negócio do Levy, do ajuste fiscal, e ele vendo que eu estava lutando contra no PT, e ele me liga, e diz: “Lindbergh, temos de dar uma de black bloc aqui no Senado. Vamos juntar os senadores, o black bloc tem a coragem de enfrentamento”, e nós montamos uma equipe para fazer aquele debate com ele.

O império e seu quintal

Por trás de tudo que aconteceu aqui no Brasil está o interesse do império norte-americano. (…) Assim como está por trás de tudo que aconteceu na América Latina, por exemplo, no Equador. Mesmo contra Cristina Kirchner foi desfechado um processo de desestabilização lá atrás. (…) Falaram que Cristina e seu chanceler estavam protegendo agentes iranianos. (…) Eu estou convencido de que aqui no Brasil eles usaram táticas e conceitos novos, a começar pelo aproveitamento das redes sociais. (…) Eu acho que esse pessoal manipulou o processo, 2013 começou com manifestações legítimas a respeito da questão do transporte coletivo, mas desde então acredito na participação da Secretaria de Justiça norte-americana. A extrema-direita dos EUA participou da fundação de grupos como o Vem Pra Rua e o MBL. (…) A relação com a Lava Jato é evidente, Sérgio Moro e Deltan Dallagnol foram treinados e abastecidos em Washington.

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