Política

O que há por trás do lobby de Bolsonaro pelo uso da cloroquina

É clara a recomendação do Ministério da Saúde pelo uso do remédio, mostram papéis obtidos por CartaCapital

O presidente Jair Bolsonaro exalta a cloroquina. Foto: AFP
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Em 11 de janeiro, o general Eduardo Pazuello sentou-se diante dos senadores para uma audiência pública. As imagens das mortes por asfixia nos leitos e dos enterros em série em Manaus corriam o mundo. Não havia, como ainda não há, um plano detalhado de imunização dos brasileiros. Ao contrário. O ministro e seu superior, Jair Bolsonaro, brigavam contra os fatos e contra o governador tucano João Doria no episódio que ficou conhecido como a “guerra das vacinas”.

Pressionado, Pazuello negou naquela tarde, aos senadores e aos jornalistas presentes, tudo registrado em áudio e vídeo, que o governo financiasse, divulgasse ou orientasse o uso de cloroquina e de outros medicamentos sem comprovação no combate à Covid-19. “O Ministério da Saúde não define qual remédio é usado para protocolo de remédio”, afirmou, em uma língua que lembra o português. “Essa é a posição oficial.”

Um documento do Exército obtido com exclusividade por CartaCapital desmente, no entanto, o ministro. Obtido via Lei de Acesso à Informação, o despacho do comando não deixa margem a dúvidas: Pazuello mentiu descaradamente aos senadores. Não se perca pelo linguajar claudicante do informe. “Em 17 de junho de 2020”, descreve o texto, “foram expedidas novas Orientações do Ministério da Saúde para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da COVID-19, a respeito da prescrição de medicamentos, incluindo novamente a Cloroquina, em pacientes adultos, que apresentem sintomas leves, moderados ou graves da doença.” Ou seja, os militares apenas cumprem a decisão do ministério de fabricar e distribuir a cloroquina, ao contrário do afirmado por Pazuello.

O pedido de informação partiu do gabinete do senador petista Humberto Costa e buscava detalhes sobre a decisão de produzir lotes adicionais de cloroquina de 150 miligramas no Laboratório Químico Físico do Exército no ano passado. A resposta inclui um histórico de portarias, notas técnicas e orientações emitidas pelo Ministério da Saúde que recomendam e regulamentam a prescrição do placebo.

A mentira do general Pazuello é parte de uma história nebulosa em torno do estímulo ao consumo de cloroquina no País. Não se trata apenas do obscurantismo anticientífico. Empresários apoiadores de Bolsonaro têm lucrado alto com o medicamento, que tem em Bolsonaro o seu maior garoto-propaganda.

No ano passado, o comércio do kit Covid” cresceu surpreendentes 550% e movimentou mais de 500 milhões de reais. Até novembro, o governo federal havia distribuído 5,8 milhões de comprimidos produzidos no laboratório do Exército. Sobram recursos e lucros na aposta no placebo, faltam dinheiro e empenho para garantir vacinas à população. Segundo a Frente Nacional de Prefeitos, 40% das capitais e 60% dos demais municípios estão sem estoques de imunizantes. Em algumas cidades, entre elas o Rio de Janeiro, a vacinação foi suspensa antes que os idosos acima de 90 anos tomassem a segunda dose. O desabastecimento ocorre no pior momento da pandemia. Os mais de 250 mil mortos no Brasil correspondem a 10% das vítimas no mundo e três novas mutações do vírus, com alto potencial de infecção, passaram a circular no território nacional. 

Diante da tragédia, qual foi a decisão de Pazuello? Aumentar o estoque do placebo. No site de compras do governo federal há uma convocação pública para a produção adicional de cloroquina e hidroxicloroquina. Só para fazer propaganda do “tratamento precoce”, a Secretaria de Comunicação torrou 23 milhões de reais. “A rigor, se estivéssemos em um ambiente que prezasse pela verdade, um Congresso mais forte, que exercesse o seu papel fiscalizador, Pazuello poderia até ser enquadrado em crime de responsabilidade por orientar um medicamento que não pode ser utilizado em uma pandemia. É um absurdo. Houve distribuição até por meio de planos de saúde”, afirma Costa.

As vendas de cloroquina nas farmácias e drogarias saltaram de 963 mil unidades em 2019 para mais de 2 milhões no ano seguinte. O comércio da ivermectina, outro medicamento sem efeito comprovado, pulou de 8 milhões de unidades para 52,3 milhões no mesmo período. Pior, o excesso de consumo do antiparasitário provocou uma onda de casos de hepatite pelo País.

Consta que Bolsonaro decidiu promover a cloroquina para agradar a Donald “I Love You” Trump. O então presidente dos Estados Unidos tinha um interesse particular no remédio, por ser um investidor na francesa Sanofi Aventis, único laboratório estrangeiro autorizado a comercializar as pílulas para o Brasil. Não só. Segundo reportagem do New York Times, o bilionário Ken Fisher, um dos maiores doadores do Partido Republicano, também figura entre os acionistas da Sanofi, enquanto o ex-secretário de Comércio Wilbur Ross administrava um fundo com aplicações vultosas na empresa. Em junho do ano passado, o Ministério das Relações Exteriores fechou parceria com Washington e recebeu uma doação de 2 milhões de doses de hidroxicloroquina, cuja validade estava prestes a acabar. O chanceler Ernesto Araújo comemorou o “feito” em uma rede social: “Cooperação Brasil-EUA no combate ao Covid-19 continua avançando. Colaboraremos com os EUA na pesquisa clínica da hidroxicloroquina e no desenvolvimento de uma vacina”.

A Sanofi agradece, mas não lucra sozinha. Outros três laboratórios possuem autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária para produzir e vender cloroquina no Brasil. Bolsonaro com frequência usa as suas lives às quintas-feiras para fazer “propaganda espontânea” do produto. O Reuquinol, cuja base é composta de cloroquina, é um dos preferidos do ex-capitão, que chegou a exibir uma caixa durante reunião do G-20, clube das 20 maiores economias do planeta. Um adendo: Bolsonaro é o único dos presidentes do G-20 que se recusa abertamente a tomar a vacina contra a Covid-19. O presidente tentou ainda oferecer o comprimido à ema do Palácio da Alvorada. A ave, como em outras ocasiões, bateu em retirada e fez questão de manter distanciamento social do assediador. 

O presidente Jair Bolsonaro promovendo medicamento sem eficácia comprovada contra a Covid-19. Foto: EVARISTO SÁ/AFP

O dono do laboratório que produz o Reuquinol é Renato Spallicci, bolsonarista empedernido. Até fechar o acesso às suas redes sociais, o empresário tinha o hábito de atacar Lula e Dilma Rousseff e defender o ex-capitão. Em um dos posts, exibiu um desenho de Bolsonaro com o tradicional gesto da arminha, acompanhado do seguinte texto: “Acordar sabendo que seu presidente não é do PT, não tem preço”.  Na campanha presidencial de 2018, fez questão de se declarar: “Renato Spallicci vota em Bolsonaro”. Apesar de atuar no setor farmacêutico, ele abraça as teorias da conspiração a respeito da origem da epidemia, atribuída ao “vírus chinês”. No Twitter, além de defender a cloroquina, o empresário dissemina: “O Covid nasceu na China, cresceu na Itália, estourou na França, fez graduação na Espanha, doutorado nos EUA e política no Brasil”. Ele curte mensagens do general Augusto Heleno, chama políticos progressistas de comunistas e dá aval à tese de que João Doria, governador paulista, e Alexandre Kalil, prefeito de Belo Horizonte, apreciam a “ditadura chinesa”. 

Um apoio tão entusiasmado haveria de ser recompensado. Brasília influiu diplomaticamente para alavancar a produção de Spallicci. Uma troca de mensagens entre o embaixador brasileiro em Nova Délhi, Elias Luna Santos, e autoridades da Índia mostra que o Itamaraty intermediou a negociação para a importação de insumos usados na fabricação da hidroxicloroquina. Quem ganhou com as negociações? A Apsen, empresa do aliado. “A fabricação depende de matéria-prima importada, em sua maior parte da Índia. Em 25 de março de 2020, o governo indiano proibiu a importação desses insumos devido à grande demanda mundial. (…) Foi estabelecido um canal de comunicação aberto com o Ministério da Saúde e demais órgãos na esfera federal – respeitando todas as regras setoriais e o cumprimento das leis do País – com o objetivo da manutenção do atendimento de pacientes crônicos, para que não houvesse interrupção ou prejuízo em seu tratamento. O governo atuou a partir dessa interlocução ampla e geral do setor para a liberação”, informa a Apsen em nota. A empresa diz ainda que Spallicci não mantém qualquer relação pessoal com Bolsonaro.

Outro beneficiado é o EMS, controlado pelo empresário Carlos Sanchez. Um dos maiores bilionários do País, segundo a revista Forbes, fortuna calculada em 2,5 bilhões de dólares, Sanchez reuniu-se ao menos duas vezes com Bolsonaro, desde o início da pandemia. Meses atrás, em nota oficial, o laboratório admitiu a ineficácia do medicamento no tratamento do vírus. “As pesquisas foram conduzidas pela Coalizão Covid-19 Brasil, formada pelos hospitais Israelita Albert Einstein, Sírio-Libanês, HCOR, Oswaldo Cruz, Moinhos de Vento, Beneficência Portuguesa, Rede Brasileira de Pesquisa em Terapia Intensiva (BRICNet) e BCRI. O resultado, publicado no New England Journal of Medicine no dia 23/07, atestou que o medicamento não promoveu melhoria nos quadros clínicos”.

O terceiro desta lista é o Cristália, cujo cofundador e acionista, Ogari de Castro Pacheco, é aliado de Bolsonaro, filiado ao DEM e segundo suplente do emedebista Eduardo Gomes, ex-líder do governo no Senado. Em nota, o laboratório nega ter lucrado com o medicamento. O Quinacris, diz a nota, é fornecido unicamente ao Sistema Único de Saúde e a hospitais particulares e o fato de não ter havido uma alta das doenças para as quais o medicamento é recomendado – malária, amebíase hepática, lúpus –, igualmente não ocorreu um “aumento significativo na produção ou venda”.

A obsessão de Bolsonaro pelo placebo não passa despercebida pelos demais poderes da República. No domingo 21, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, enviou uma queixa-crime contra o presidente ao procurador-geral da República, Augusto Aras, por sua insistência em defender o uso da cloroquina. A denúncia, feita pelo PDT, aponta que ao menos cinco ministérios, mais o Exército, foram mobilizados para a tarefa de produzir e distribuir o “kit Covid”. No período da pandemia, o governo distribuiu 5,4 milhões de comprimidos de cloroquina e 481 mil de hidroxicloroquina. Só o laboratório militar foi forçado a produzir 3,2 milhões de doses com um gasto estimado de 1,6 milhão de reais, feito sob dispensa de licitação em ao menos nove contratos.

“Estamos pedindo a responsabilização criminal, pois essa política agravou os efeitos da pandemia. Enquanto o mundo inteiro compra vacina e dissemina o uso de máscara, aqui Bolsonaro elege a cloroquina como solução”, afirmou Carlos Lupi, presidente nacional do PDT, um dos autores da petição que resultou na notícia-crime no STF. Sobre a celeridade do envio da pauta à Procuradoria-Geral da República, Lupi acredita que o Supremo tem pressa em dar uma resposta à sociedade.

Mais dados obtidos via Lei de Acesso à Informação apontam um aumento vertiginoso na produção do medicamento pelo Laboratório do Exército. Para efeitos de comparação, em cinco anos foram produzidos 265 mil comprimidos de cloroquina de 150 miligramas. O gasto somou 55,6 mil reais. No período de 30 dias durante a pandemia – entre março e abril –  foram produzidos 1,2 milhão de comprimidos, que consumiram 261 mil reais. A força, que teria produzido um total de 3,2 milhões de cloroquina em 2020, também está na mira do Tribunal de Contas da União por suspeita de superfaturamento. Em maio, os insumos adquiridos da empresa Sul Minas registraram um aumento de 167% nos preços. Não bastasse, o Ministério da Saúde desviou 70,4 milhões de reais do programa emergencial de combate à Covid-19 para a produção de 4 milhões de comprimidos de cloroquina pela Fiocruz, o laboratório estatal que sofre com a falta de insumos para a fabricação da vacina Oxford/AstraZeneca. 

Além da queixa-crime de Rosa Weber, correm quatro investigações sobre a atuação de Bolsonaro e Pazuello no combate à pandemia. Todas apuram os gastos e o apoio na produção de remédios sem efeito comprovado. Ricardo Lewandowski, colega de Weber no STF, determinou a abertura de inquérito sobre a responsabilidade do ministro da Saúde na crise de Manaus. Enquanto os pacientes da capital amazonense, literalmente, asfixiavam sem oxigênio, o ministério enviou 120 mil comprimidos de cloroquina e tentou forçar a secretaria estadual a impor o “tratamento precoce”. Pazuello também enviou uma força-tarefa de 11 médicos para difundir a cloroquina em solo manauara. Um dia antes da chegada da equipe enviada pelo ministro, a secretária da Saúde, Mayra Pinheiro, assinou ofício no qual exigia a prescrição do “kit Covid”. A médica ficou famosa, em 2013, ao agredir colegas cubanos que vieram ao Brasil integrar o programa “Mais Médicos”.

O TCU classifica como ilegal o uso de recursos do SUS para o fornecimento do chamado “tratamento precoce” – cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina. O Ministério Público Federal, por seu turno, instaurou inquérito para apurar supostos atos de improbidade do governo federal e de Pazuello pela aplicação ilegal de dinheiro público, em especial do Fundo Nacional de Combate à Covid, na aquisição do “kit Covid”. São investigadas ainda a baixa execução orçamentária nas ações de enfrentamento da doença, a falta de envio de equipamentos de proteção individual e a omissão na compra de vacinas. As cobranças estendem-se ao Exército e à Aeronáutica.

O Conselho Federal de Farmácia rejeita o uso de medicação de efeito não comprovado contra o vírus. “O CFF se posicionou inúmeras vezes diante da categoria e da sociedade, reafirmando sua defesa da assistência à saúde baseada em evidências”, afirmou Tarcisio Palhano, assessor da presidência. O Conselho Federal de Medicina, por sua vez, mantém uma postura ambígua. A diretoria, que apoia Bolsonaro, liberou os médicos a decidirem se prescrevem ou não o remédio. Quase 30% dos profissionais da área, apelidados de “cloroquiners”, apoiam o tal tratamento precoce, embora as pesquisas desenvolvidas nos últimos meses sejam suficientes para comprovar a ineficácia dos placebos e o risco à saúde em pacientes com Covid-19. No pior momento desde o início da pandemia, uma associação chamada Médicos pela Vida achou oportuno publicar nos jornais um “informe publicitário” em favor do “kit Covid”. Não há abaixo-assinados no anúncio, que cita a posição do CFM para defender o comprimido.

Bolsonaro prossegue em sua campanha. Em uma live deste ano, o ex-capitão, do alto de seu conhecimento científico, garantiu que a cloroquina não produz efeitos colaterais e que 200 funcionários do Palácio do Planalto teriam usado o “kit Covid”. “O ministro da Saúde esteve lá (Manaus) na segunda, providenciou oxigênio. Começou o tratamento precoce, que alguns criticam. Quem critica, não tome. Fique tranquilo. Agora, tem médico que vai receitar e pode receitar tratamento precoce. Se o médico não quiser, procure outro médico. Não tem problema”, aconselhou.

Enquanto isso, o Brasil continua a deslizar no caos. Janeiro e fevereiro registraram as maiores médias de mortes desde o começo da pandemia. Estacionamos no incômodo patamar de ao menos mil óbitos por dia. De acordo com Jonas Donizetti, presidente da Frente Nacional de Prefeitos, a situação é trágica. A única solução no momento, afirma, seria aplicar doses únicas no máximo possível de brasileiros até a chegada de novos lotes. “O Pazuello disse que vamos receber uma remessa de 4,7 milhões doses e que podemos aplicar tudo de uma vez. Por isso, enviamos um documento com um pedido de confirmação.” Para o dirigente, a demora na compra de vacinas, uma comunicação falha e a falta de um centro de comando prejudicaram o Plano Nacional de Imunização. Com a decisão do Supremo Tribunal Federal de liberar a compra direta por estados e municípios, a frente decidiu montar um consórcio público. “Pedimos também que o ministro acelere a compra do produto da Pfizer, a primeira a receber o registro definitivo.”

Bolsonaro não tem do que reclamar. A decisão do STF, em grande medida, o livra do compromisso constitucional de suprir a demanda pela vacina. Os votos dos ministros servirão, mais uma vez, para o presidente se esquivar da responsabilidade. Sem um Congresso para chamá-lo às falas, o presidente fica livre para desempenhar com afinco o papel de “capitão cloroquina”. Nos laboratórios dos amigos, a caixa registradora não para de funcionar.

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