Justiça

Decisões de Damares e Mario Frias levantam suspeitas de ingerência ideológica

Falta de argumentos precisos sobre negativa a anistias e ao plano anual de Instituto Vladimir Herzog provocam o temor de ativistas

A ministra Damares Alves e o presidente Jair Bolsonaro (Foto: Carolina Antunes/PR)
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Tendo como plano de fundo o pior momento da pandemia no Brasil, a condução de Damares Alves à frente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos tem provocado suspeitas de ingerência ideológica.

A desconfiança também envolve a Secretaria Especial de Cultura, chefiada por Mário Frias.

Entre os casos que chamaram atenção, está a publicação, no início de fevereiro, de uma portaria que visa alterar a condução das políticas nacionais pelos direitos humanos sem a participação da sociedade civil e a não aprovação, sem explicações precisas e com direito a ataques em redes sociais, do plano anual de atividades culturais do Instituto Vladimir Herzog, que há dez anos captava recursos sob a antiga Lei Rouanet.

Além disso, foi indeferido [QUANDO?] o pedido de anistia do dirigente petista Markus Sokol, aprovado por unanimidade pela comissão em 2017, mas rejeitado pela ministra Damares em seu aval final. Sokol foi torturado pelo regime nos anos 70.

Oficialmente, as pastas atribuem a recusa a Sokol e ao Instituto Vladimir Herzog à falta de informações transparentes sobre os processos. A reformulação proposta por Damares, porém, insinua uma “revisão secreta” dos parâmetros que baseiam as políticas públicas voltadas aos direitos humanos no Brasil, segundo avalia a ONG Human Rights Watch.

No dia 10 de fevereiro, o Ministério oficializou a criação de um grupo de trabalho para propor revisões e possíveis mudanças no Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), a principal diretriz das políticas de direitos humanos no País. No entanto, ao contrário do que foi observado na última reformulação, feita no governo Lula, o grupo de trabalho não inclui representantes da sociedade civil, do congresso ou do judiciário em sua composição fixa, e tem como premissa o sigilo do conteúdo discutido nas reuniões entre os membros.

Os participantes também são marcadamente alinhados à “pauta de costumes” bolsonarista. Conforme apurou uma reportagem da Agência Pública integram o grupo, por exemplo, um militar fã de Olavo de Carvalho e um advogado católico contrário ao aborto até mesmo em casos de anencefalia.

Para Maria Laura Canineu, porta-voz da Human Rights Watch no Brasil, há evidências de uma tentativa diferente para o desmonte do Plano. Como exemplo, ela cita a recente investida do governo em separar crianças com deficiências do resto dos alunos, o que também evidencia o caráter transversal das visões atreladas à ideologia do presidente.

“Na prática, significa que a revisão de políticas deve ocorrer à portas fechadas e sem pluralidade de opinião. Isso é muito preocupante, sobretudo considerando o histórico deplorável do governo Bolsonaro em relação aos direitos humanos”, diz.  As mudanças, pontua, dizem respeito à proteção das pessoas com deficiência, a redução da letalidade policial, a educação sobre os direitos sexuais e reprodutivos, a liberdade de expressão, entre outras iniciativas.

 

Dias depois da publicação, mais de 200 organizações não-governamentais brasileiras publicaram uma nota pública conjunta criticando a portaria. Em resposta, o Ministério afirmou que “causa perplexidade” a referência de que o grupo atuaria secretamente, mas não respondeu especificamente por que, segundo diz o próprio texto do decreto, as reuniões não teriam seu conteúdo revelado para o público.

A defesa de Damares foi mais enfática. Em um vídeo publicado nas redes sociais do Ministério, ela apontou que os “ex-ministros e a esquerda, que saiu do poder” disseram que ela iria mexer especificamente no Plano Nacional de Direitos Humanos 3, desenvolvido em 2009 e que rege as diretrizes, até hoje, das políticas públicas voltadas ao tema.

“É claro que a gente vai rever também esse plano. Se eu vou avaliar todas as políticas de direitos humanos, o plano também vai ser avaliado.”, justifica. Depois, a ministra argumenta que haverá “ampla participação popular” a ser desenvolvida pela Escola Nacional de Administração Pública, que ainda estaria trabalhando na metodologia para tal.

Entre os pilares do PNDH-3, estava a formação da Comissão Nacional da Verdade, que desembocou na Comissão de Anistia. Anteriormente vinculada ao Ministério da Justiça, a Comissão é responsável por julgar pedidos de indenização a perseguidos e torturados pela ditadura de 1964, um esforço de “reparação”, ao menos simbólica e material, aos crimes cometidos pelos militares.

Também naquele 10 de fevereiro, a pasta de Damares oficializou a negativa a uma série de pedidos de anistia. Entre eles, o de Markus Sokol, economista e militante do PT há 40 anos que, aos 19, foi preso e torturado no DOI-CODI em São Paulo.

“Quando eu entrei para a clandestinidade, eu era um estudante secundarista lutando contra o regime militar. Fui preso e torturado em 1973, e nunca tive direito à cidadania”, diz Sokol.

O economista e militante do PT Markus Sokol (Foto: Kamila Ferreira/Agência PT)

Filho de imigrantes poloneses que vieram ao Brasil em uma mistura de “fuga do antissemitismo e em busca de busca de melhores condições de vida”, Sokol lembra que, mesmo depois da soltura e do arquivamento do processo, ele não conseguia naturalizar-se brasileiro para poder exercer seu ofício no âmbito público. Casou-se, teve três filhos brasileiros e esperou até os 40 anos, mesmo estando no país desde os 4, para poder também se declarar como tal.

Antes da Comissão da Anistia, ele decidiu pedir documentações referentes ao seu processo de naturalização ao estado para entender detalhes do caso. “É um dossiê com mais de 500 páginas de ofícios de vários órgãos de informação ao meu respeito. Meu processo sobre a naturalização ficava parado na gaveta dos ministros da Justiça. Cada ministro tinha um oficial que tutelava e vetava seus atos. Isso aconteceu no meu caso por longo de vários ministros, é indiscutível.”

Em junho de 2017, o economista compareceu a uma audiência realizada pelo então ministro da Justiça Alexandre de Moraes para a análise, junto à Comissão de Anistia, de seu pedido e das alegações de que o direito à cidadania lhe havia sido negado. Por unanimidade, lhe foi concedido um pedido de desculpas em nome do estado brasileiro e determinado o pagamento da reparação. O aval final percorreu os últimos 3 anos até cair no colo da ministra Damares, que o indeferiu em uma decisão monocrática.

“Tecnicamente, todo pedido indeferido corresponde a um parecer, e eu ainda não tive acesso a ele. Essa é a situação de centenas de brasileiros e brasileiras que estão sendo agredidos por esse processo de destruição e desmonte, especificamente para direitos humanos. O país está sendo desmantelado. Mas eu não estou surpreso”, desabafa.

Também não é novidade que a Comissão de Anistia está na mira de Damares, que já alegou, mais de uma vez, querer encerrar as atividades do grupo com a finalização de todos os pedidos pendentes o mais rápido possível.

“Se fosse Brilhante Ustra, seria ideologização”

No dia 12 de fevereiro, o Instituto Vladimir Herzog teve o projeto anual inscrito na Secretaria Especial de Cultura reprovado pela primeira vez desde sua fundação. Não demorou muito para que os integrantes do Instituto tivessem uma dura hipótese à mesa.

Nas redes sociais, o secretário especial de Cultura, Mário Frias, e o Secretário Nacional de Incentivo e Fomento à Cultura, André Porciuncula, acusavam o Instituto de desenvolver “atividade jornalística” com os recursos da cultura. Reproduzindo uma matéria publicada na coluna de Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo, eles alegavam, publicamente e sem provas, que o Instituto captou recursos de forma irregular ao longo dos dez anos anteriores.

A pá de cal foi a publicação do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). “Se fossem dar Rouanet para um Instituto de nome Brilhante Ustra diriam é ideologização e etc. O governo é técnico, ponto. Aplica a lei”, publicou, comparando o nome de um dos militares torturadores mais conhecidos da ditadura ao diretor de Jornalismo da TV Cultura, cujo assassinato nas dependências do DOI-CODI ficou marcado também pela tentativa de apagamento de sua história, veiculada como “suicídio” na versão oficial da época.

Entre as atividades propostas para a captação de recursos junto a empresas e organizações, estava a preservação do acervo cultural do site Memórias da Ditadura, a elaboração da Coleção Direitos Humanos, Memória, Verdade e Justiça, um livro sobre a vala clandestina de Perus e a promoção de Webinários com temas correlatos. Há também a intenção de continuar com a organização de um livro sobre Vladimir Herzog.

“A natureza dos projetos é bastante parecida: vários dos que inscrevemos e que foram aprovados no ano passado a gente não conseguiu executar porque não houve investimento. Então nós inscrevemos de novo na expectativa desse ano fazer alguma captação.”, afirma Giuliano Gali, coordenador de Jornalismo e Liberdade de Expressão.

“A gente não pode dissociar que Eduardo Bolsonaro é filho de Jair Bolsonaro. A gente não pode dissociar isso tudo do indeferimento do nosso projeto. Esse caso é bem elucidativo como a ideologia política é o que conduz esse governo. O mesmo plano anual que apresentamos à Lei, com as mesmas atividades, se fosse apresentado por uma entidade que não leva o nome de um homem que lutou contra a ditadura, seria aprovado. A gente precisa entender o que está acontecendo, qual é a explicação oficial.”, argumenta Gali.

Em nota, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos afirmou que o caso de Markus Sokol está à disposição do requerente via Lei de Acesso à Informação, e que o “parecer emitido pelo conselho [da Comissão de Anistia] não vincula a decisão da Ministra de Estado.”

O Ministério do Turismo, que sustenta a estrutura da Secretaria Especial de Cultura, não respondeu aos questionamentos feitos pela reportagem, incluindo questionamentos sobre quais as provas de que haveria “ilegalidade” no funcionamento da lei de captação, conforme alegado pelos dois secretários.

Para Maria Laura Canineu, as instituições brasileiras têm obtido sucesso em barrar algumas das investidas do governo ou de atuar em omissões, como a recomendação emitida pelo Conselho Nacional de Justiça a juízes para prisões provisórias a fim de coibir a propagação da Covid-19 em prisões e unidades socioeducativas, ou a derrubada de vetos presidenciais, por parte do Congresso, em relação a uma legislação sobre cuidados de saúde emergenciais para os povos indígenas. Mas a lista de desmontes ainda é grande.

“Temos preocupação com a baixa execução orçamentária do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, incluindo no que se refere a políticas relacionadas a mulheres e à população LGBT. A ministra Damares Alves tem aproveitado de toda oportunidade no plano internacional para se aliar a outros governos na promoção de uma pauta contra os direitos sexuais e reprodutivos.”, exemplifica.

À época que recorreu à Comissão de Anistia, Markus Sokol o fez a contragosto, já que ele se coloca como crítico à lei que deu um “cala a boca” aos presos e perseguidos e fez com que o Brasil se isentasse de julgar os torturadores e agentes de desaparições forçadas, perseguições políticas e outras subversões da democracia. Em 2013, repensou seu posicionamento devido a uma “ofensiva da extrema-direita, à época da Comissão da Verdade, para regredir e revisar certos direitos básicos”, explica. Aos 68 anos, aguarda pelas respostas ao seu direito à uma justiça, ainda que incompleta, ao seu ver.

“É importante para a nação brasileira o estabelecimento de uma democracia, digna desse nome, que todos os cidadãos que foram presos, demitidos, perseguidos, torturados e mortos, tenham esse crime reconhecido e reparado”, diz. “O meu pleito é uma gota no oceano, mas o oceano é feito de gotas. Eu vou resolver esse caso em vida. Não vou deixá-lo para os meus filhos”.

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