Entrevistas

‘Todas as nossas estratégias não-farmacológicas já foram implementadas’

Em entrevista a CartaCapital, o coordenador do Centro de Contingência em São Paulo critica governo e avalia novas medidas restritivas

O coordenador do Centro de Contingência da Covid-19 em São Paulo, João Gabbardo dos Reis. Foto: GOVSP
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“Talvez, a inexperiência tenha sido o pior nessa administração.” Assim o médico João Gabbardo dos Reis descreve a gestão de Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde, no momento em que o general dá lugar ao cardiologista Marcelo Queiroga. Em entrevista a CartaCapital, o coordenador do Centro de Contingência da Covid-19 em São Paulo diz que a passagem do militar na pasta foi “desastrosa” e que não espera mudanças na postura do presidente Jair Bolsonaro com o novo gestor da Saúde. “Isso não vai acontecer. Às vezes, ele tem uma recaída e fala em diálogo, mas isso não dura doze horas.”

O fator Bolsonaro emperra o cálculo das medidas sanitárias a serem adotadas. Ao avaliar a possibilidade de lockdown, com restrições durante o dia, Gabbardo prevê boicote imediato pelo governo federal. “Ele está entrando no Supremo contra estados que decretaram toque de recolher à noite. Imagine o que aconteceria se tivéssemos que fazer isso durante o dia”, afirma. Depois de São Paulo entrar na fase “emergencial”, mais rigorosa que a fase vermelha, Gabbardo diz que só resta fechar setores como a construção civil, as indústrias e o transporte coletivo e, em último caso, impor uma espécie de lockdown diurno.

São Paulo tem mais de 66 mil mortos por coronavírus e 91% de ocupação nos leitos de UTI. “Se, no final do mês, quando termina a fase emergencial, percebermos que não tivemos sucesso nas medidas de distanciamento, teremos que pensar nessas outras alternativas muito mais complexas”, afirma.

A impressão que dá é que a gente está enxugando gelo. Aumentam 100 leitos hoje, no final do dia eles já estão ocupados

Gabbardo foi nomeado para coordenar o Centro de Contingência em maio do ano passado. Antes, era secretário-executivo no Ministério da Saúde, mas saiu do cargo depois da queda de Luiz Henrique Mandetta.

O médico completa dez meses no posto em meio ao pior momento da pandemia. Ele ainda descarta falta de oxigênio, como ocorreu em Manaus, mas se diz preocupado com a falta de medicamentos, como sedativos para a intubação, e com a escassa disponibilidade de profissionais de saúde para a abertura de novos leitos.

Com o fim da fase emergencial, decretada entre 15 e 30 de março, Gabbardo explica como o governo estadual deve desarmar uma bomba-relógio que vem pela frente: as viagens da Sexta-feira Santa, em 2 de abril. Com expectativas de alto tráfego para litoral, o Centro de Contingência recomendou ações como o cancelamento da Operação Descida, esquema de trânsito que ampliaria o fluxo.

Mas, no fundo, o especialista diz contar com a consciência dos paulistas. “A população não pode imaginar que tudo vai ser resolvido através de decreto governamental.”

Confira a entrevista a seguir.

CartaCapital: Qual a relação entre esta fase da pandemia e as novas cepas?

João Gabbardo dos Reis: A velocidade dessa doença com a variante é muito maior. As pessoas que se contaminam são portadoras de carga viral mais elevada. Com isso, têm capacidade maior de transmitir a doença. Uma pessoa contaminada transmite para um número maior de pessoas. Assim, aumenta a demanda pelos leitos de UTI. A impressão que dá é que a gente está enxugando gelo. Aumentam 100 leitos hoje, no final do dia eles já estão ocupados. Aumentam 200 leitos, ao final do dia estão ocupados. A velocidade da transmissão, de pessoas que ficam doentes, é maior que a nossa capacidade de aumentarmos os nossos leitos.

Profissionais de saúde atendem paciente no Hospital Emílio Ribas, em São Paulo. Foto: Miguel Schincariol/AFP

CC: Que medidas restritivas ainda podem ser tomadas em São Paulo?

JGR: Tudo o que a gente dispunha de informação, tudo o que a gente tem de estratégia para reduzir a transmissibilidade da doença já foi implementado. O que nos resta? Alguns setores que nunca fecharam, como a construção civil e a indústria. Mas são fechamentos muito complexos. Uma coisa é fechar um restaurante: os funcionários vão manter, mesmo que precariamente, o vínculo empregatício. Vão continuar trabalhando com alternativas como a tele-entrega.

Na construção civil, trabalha-se por empreitadas. No momento que você fecha a obra, essas pessoas ficam absolutamente desprotegidas, sem receber aquele dinheiro que costumavam receber nas sextas-feiras. Pelos nossos cálculos, a paralisação da construção civil vai significar, de um dia para o outro, 500 mil pessoas desempregadas.

Como paralisar o transporte coletivo e deixar as pessoas que têm que desempenhar as atividades essenciais? O ideal é que a gente consiga diminuir a demanda. Mas, no entendimento do Centro de Contingência, o transporte coletivo deve se manter funcionando, sem redução de oferta de horários para não ocorrer aglomeração.

Na questão da indústria, também. Temos indústrias que, se tiverem que fechar, só para reabrir e reacender um forno é preciso de um tempo de uma a duas semanas. Então, são setores que a gente não mexeu ainda. Por último, depois de tudo isso, o que nos resta? Impedir que, durante o dia, as pessoas se movimentem.

CC: Um lockdown, portanto?

JGR: Seria o que, conceitualmente, mais se aproxima do lockdown, em que as pessoas têm que permanecer em casa, só podem sair para atividades excepcionais. Mas isso é muito difícil, só é possível se tiver policiamento, fiscalização, controle. O governo federal vai boicotar. O governo federal está entrando no Supremo contra três estados que decretaram toque de recolher à noite. Imagine o que aconteceria se tivéssemos que fazer isso num estado como São Paulo durante o dia.

CC: Há chances de isso ser implementado?

JGR: São medidas muito difíceis que, por enquanto, ainda não foram colocadas como uma possibilidade. Neste sábado vamos completar duas semanas na fase vermelha. E nós estamos há cinco dias na fase emergencial, com medidas ainda mais restritivas. Já dá para perceber resultados. Houve diminuição no número de pessoas que utilizam trens, metrôs, ônibus e na circulação de veículos particulares.

Só que os resultados dessas ações só aparecem depois de duas semanas. Uma semana depois dessas duas semanas, a gente começa a perceber redução no número de hospitalizações. E só depois de um mês a gente vai perceber redução nos óbitos. Temos que ter um pouco de paciência. Neste momento, a gente defende permanecer com esta situação que temos em São Paulo e aguardar o resultado dessas medidas.

O outro indicador importante, que é a taxa de ocupação de leitos de UTI. Vai ser o último a melhorar. Se, no final do mês, quando termina a fase emergencial, não tivermos sucesso nas medidas de distanciamento, teremos que pensar nessas outras alternativas que eu citei anteriormente, e que são muito mais complexas. Vamos tentar trabalhar para não as implementar. Seria muito extremo.

CC: Dificilmente o quadro da pandemia estará muito melhor no dia 30.

JGR: O que nós vamos propor é que as medidas que já foram tomadas sejam cumpridas de forma mais forte. Ou seja: não adianta orientar, se essas medidas não são cumpridas. Aí nós vamos para outras recomendações, e outras. Ampliação da fiscalização, do policiamento, penalidades, punições, multas… O que o Centro de Contingência recomenda nesse momento é que o governo possa garantir o cumprimento das medidas já em vigor. Infelizmente, as pessoas respondem melhor quando a penalidade impacta no bolso.

Passageiros se aglomeram em metrô de São Paulo. Foto: Miguel Schincariol/AFP

CC: Em São Paulo, estamos próximos de um cenário de falta de oxigênio e de medicamentos?

JGR: Eu acho muito pouco provável que a gente tenha problema com oxigênio em São Paulo. Existe facilidade de fazer uma conversão na utilização de oxigênio da indústria para o setor da saúde, se for necessário. Há uma reserva que nos deixa mais ou menos tranquilos.

O que pode acontecer é alguma dificuldade no oxigênio utilizado nas residências. Pode haver problemas na disponibilidade dos botijões específicos para oxigênio. A dificuldade seria no varejo, no uso domiciliar, nos pequenos ambulatórios, não nos hospitais. Até porque grande maioria dos hospitais em São Paulo tem usinas para a produção de oxigênio.

Em relação aos medicamentos, São Paulo se preparou com uma aquisição bastante volumosa em relação àqueles necessários para a sedação dos pacientes intubados. Mas isso precisa ser reabastecido. Se o País continuar com dificuldades na disponibilização ou na importação desses produtos, no futuro isso pode ser um problema sim. E não é só nesses itens. Outros itens mais simples, como até mesmo antibióticos, poderão ter problemas na sua produção por conta da “não chegada” dos insumos. É uma preocupação, mas não é a curto prazo.

CC: E em relação a respiradores e outros equipamentos?

JGR: Respirador, hoje, não é o maior problema. O maior problema são as equipes para operar os respiradores. Todo o pessoal está trabalhando num regime exaustivo. Os hospitais têm dificuldades em completar suas escalas de plantão. Esse é o fator limitante para a abertura de novos leitos.

 

CC: Qual foi o saldo da passagem de Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde?

JGR: Essa intervenção no Ministério da Saúde foi desastrosa. Se o Pazuello tivesse assumido, mas mantivesse ou escolhesse uma equipe técnica, o resultado seria melhor. Mas trazer gente de fora, que nunca passou por lá, que não conhece o SUS? A Saúde é muito complexa. Tinha gente lá que, nas primeiras entrevistas, não sabia o que era o SUS. A inexperiência talvez tenha sido o pior nessa administração.

Talvez nem tanto por culpa do próprio ministro, ele ficou muito subordinado à missão do presidente, realizando as atividades de acordo com a orientação do presidente. Isso serviu como um boicote a todas as ações que os gestores estaduais e municipais tentaram emplacar. Imagina ter 30% da população que passa o tempo todo nas redes sociais combatendo e tentando depreciar as medidas sanitárias e de todas as formas possíveis. Isso cria uma resistência muito grande.

Não é por outra razão que, hoje, a gente convive com hospitais lotados, sem ter onde colocar as pessoas, e na frente, você tem uma carreata de seguidores fazendo baderna, buzinando, sem o mínimo de respeito, querendo retorno às atividades econômicas e o fim do distanciamento social e do uso de máscaras.

CC: Quais as suas expectativas em relação ao novo ministro, Marcelo Queiroga? Já houve alguma conversa?

JGR: Eu, pelo menos, não tive nenhum contato. O contato deve ser feito pelo secretário de Saúde. Minha função é dar assessoria ao governador no Centro de Contingência, não tenho a incumbência de fazer essa relação com o governo federal. A expectativa é que a gente possa resolver o problema, que tenha um ministro com independência, que tome decisões e oriente a população de acordo com a ciência, com o bom senso, sem ficar atrelado ao comportamento errático do presidente. Essa é a expectativa. Se ele vai conseguir, é uma grande incógnita.

 

CC: Houve expectativas de que o presidente mudasse de postura, especialmente depois do discurso do ex-presidente Lula. O senhor notou alguma mudança?

JGR: Isso não vai acontecer. Às vezes, ele tem uma recaída e fala em diálogo com os governadores, mas isso não dura doze horas. No dia seguinte, ele já está fazendo como fez ontem, questionando se as pessoas internadas realmente têm Covid, dizendo que a lotação das UTIs é falsa, que sempre houve superlotação. Ele vai continuar satisfazendo esse grupo de seguidores. E essa turma fica satisfeita com a negação da doença e a busca de alternativas milagrosas.

É um absurdo, é não entender o que está acontecendo. É não ter nenhuma visão da realidade. E não tem mesmo, ele [Bolsonaro] nunca foi numa UTI. O Brasil dobrou, triplicou o número de leitos, e a gente tem fila, lista de espera. Muitos vão morrer sem conseguir leitos ou, quando são atendidos, já estão numa situação muito crítica.

CC: Depois do fim da fase emergencial, em 30 de março, teremos um feriado em 2 de abril. O que o governo fará para evitar as viagens?

JGR: Nós achamos correto São Paulo em ter antecipado feriados. Mas corremos o risco de as pessoas aproveitarem esses dias para se dirigirem ao litoral. Então, vamos ter que fazer um trabalho bem significativo de comunicação, para convencer as pessoas que esse não é o momento adequado para veraneio e feriadão na praia. Serão impostas algumas barreiras. No litoral, as cidades vão limitar o uso da praia.

Se a população colaborar, a gente pode, ao final desse período, ao final do dia 30, começar a voltar com as atividades um pouco mais próximas da normalidade. Sem isso, e com essa velocidade de transmissão da doença, é muito provável que tenhamos que prorrogar essas medidas, o que é ruim para todo mundo.

A população não pode imaginar que tudo vai ser resolvido através de decreto. Se a população não assumir a sua responsabilidade, não vamos ter resultados. Ampliar a fiscalização da Vigilância Sanitária, acionar a Polícia Militar, tudo isso tem que ser intensificado, mas é insuficiente sem a população.

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