Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

O mundo é aqui lá fora onde todas as coisas acontecem

Em prisão domiciliar há vinte e sete dias, estou aqui lembrando das coisas

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Tinha eu dezessete anos de idade quando li na revista Realidade uma reportagem sobre o mundo da criança, o que passava pela cabecinha delas. Perguntada sobre o que era a vida, uma delas respondeu: “O mundo é aqui lá fora onde todas as coisas acontecem”. A frase virou título da matéria.

Em prisão domiciliar há vinte e sete dias, estou aqui lembrando dessa reportagem que nunca me saiu da cabeça, e olha que já faz cinquenta e três anos.

A minha vida, o meu tempo, hoje passa na janela, como o de Carolina que não viu. Ouço o canto das maritacas, não sei se jandaias, periquitos ou papagaios, todos com a macaca, pulando em algazarra de galho em galho da árvore que cresceu e cobre a rua e só me faz ouvir o barulho dos automóveis que passam.

O mundo pra mim já foi lá fora onde todas as coisas acontecem.

Será que Osman ainda está vendendo suco de romã feito na hora no quarteirão do Palácio Topkapi, em Istambul?

Será que a lojinha de conveniência 7 Days, ao lado do Citadines, em Tóquio, continua escondendo Kit Kat de wassabi na última prateleira, lá no fundo?

Será que hoje é dia de salada de céleri remoulade no Bouillon Chartier, metrô Grands Boulevards, em Paris?

Será que ao som da maraca, do tambor do bambu, ainda dançam salsa na Ilha de Cuba?

Será que aquelas peças maravilhosas ainda estão lá, intactas, nas paredes de cor vinho da Casa Martelli, em Florença?

Será que aquele supermercado em Covent Garden ainda vende caixinhas com seis ovos de pata?

Será que as bicicletas continuam no fundo dos canais de Amsterdam?

Será que o dono daquela pensão em Kaymakli, na Capadócia, guardou a fita K7 com a música Olhar 43, do RPM?

Será que no mercado de Abidjan, na Costa do Marfim, continuam vendendo máscaras da juventude embrulhadas no jornal Fraternité Matin?

Será que os abacaxis já estão maduros e infinitamente doces nos campos de Burkina Fasso?

Será que o Crush está estupidamente gelado no quiosque do Parque Prado, em Montevidéu?

Será que as garçonetes da Casa Salmon, em Barcelona, continuam com aquele charme, aquela beleza e aquele veneno?

Será que a banca dos irmãos Reis, em Cataguases, ainda vende números antigos da O Cruzeiro com artigos de David Nasser?

Será que aquele restaurante coberto de parreiras de uvas verdes ainda serve quibe de carne de carneiro com salada de pepino e iogurte, em Beirute?

Será que os pequenos jornaleiros estão nas ruas de Damasco oferecendo o Al Baath?

Será que aquele vinil Fabrication Defect, do Tom Zé, que vi e não comprei, ainda está na prateleira da Fnac Colombo, em Portugal?

Será que a lojinha do Museu do Tintin, em Bruxelas, ainda vende aquelas miniaturas fosforescentes do Milu?

Será que a Guernica continua lá, exposta no Museu Reina Sofía, em Madri?

Será que aquele velho fusca xadrez ainda circula pelas ruas de Viena?

Será que o luminoso da cerveja Delirium Tremens está iluminando as noites no centro de Budapeste?

Será que o livro Yes, com as obras da Yoko Ono, está exposto na vitrine da lojinha do Moma, em Nova York?

Será que antigos hippies de Christiania, no centro de Copenhagen, ainda fabricam aquele pão da cannabis?

Será que nas lojinhas de São Lourenço ainda encontramos os doces cristalizados Vovó?

Será que continuam pescando tambaqui nos afluentes do Rio Amazonas?

Será que aquele quiosque em frente ao Centro Cultural Gabriel García Márquez, em Bogotá, continua vendendo a Novena de Santa Margarita, La Loca?

Será que as garrafinhas de Vita Cola continuam lá, expostas em cima do balcão do Museu da DDR, em Berlim?

Será que os pombos insistem em pousar na cabeça da estátua de bronze de Salvador Allende, na praça em frente ao Palácio de La Moneda, em Santiago do Chile?

Será que os índios Waiãpi ainda cozinham carne de capivara com mel na folha de bananeira perto do rio Jari, no Amapá?

Será que aquele restaurante subterrâneo de Praga continua com o goulasch no cardápio?

Será que o livro Admirável Mundo Velho que um dia escrevi e deixei escondidinho na livraria Ler Devagar, em Lisboa, ainda está lá?

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